Os desafios do futebol feminino no Brasil são verdadeiras oportunidades para marcas, investidores e clubes e os Estados Unidos são prova disso
Após anos de controvérsia, expectativa e preparação, o novo torneio de futebol masculino da FIFA está prestes a começar. O Mundial de Clubes, que será disputado de 14 de junho a 13 de julho, promete atrair a atenção mundial. A julgar pelo nível de investimento e planejamento que os clubes participantes e marcas globais estão dedicando ao evento, não se trata de uma promessa vazia. Muito pelo contrário, aliás. Se os representantes de clubes brasileiros aproveitarem a oportunidade para olhar além do espetáculo previsto, podem acabar encontrando uma recompensa inesperada nos Estados Unidos: o potencial econômico do futebol feminino brasileiro.
Embora as cifras do futebol feminino ainda não se equiparem às do segmento masculino — o que pode torná-lo menos atraente para perfis de investidores imediatistas —, é um equívoco pensar que o momento ideal para investir ainda está por vir. As principais ligas ao redor do mundo demonstram que a fase de aposta já passou. O presente oferece um produto mais maduro, com potencial para ser explorado de formas inovadoras, até mesmo dentro de um mercado tão percorrido como o do futebol. Os exemplos que podem ser observados em território norte-americano são prova concreta disso.
Grande algoz da nossa Seleção Feminina de Futebol, os Estados Unidos são a principal referência de desenvolvimento do futebol feminino desde a primeira Copa do Mundo Feminina, em 1991. De lá para cá, são quatro títulos mundiais (1991, 1999, 2015 e 2019), cinco medalhas de ouro olímpicas (1996, 2004, 2008, 2012, 2024), só para citar as conquistas mais expressivas, além de ser palco para ícones globais com influência para além das quatro linhas como Megan Rapinoe, líder vocal na luta por igualdade salarial entre as seleções femininas e masculinas dos EUA.
Mas o sucesso de uma seleção precisa ser estudado a partir de muitos passos anteriores às convocações de equipes vitoriosas. E é nos movimentos recentes da NWSL, National Women’s Soccer League (Liga Nacional de Futebol Feminino, em português) que podemos encontrar evidências do contínuo fortalecimento do futebol feminino no país, que também demonstram como o empreendedorismo e as soluções de negócios disruptivas, tão associadas aos estadunidenses e admiradas ao redor do mundo, encontram nesta modalidade um ambiente para florescer.
Em março de 2024, o mundo do futebol parou para ver o Kansas City Current inaugurar o CPKC Stadium, o primeiro estádio do mundo construído especificamente para uma equipe profissional feminina. Com capacidade para 11.500 espectadores, instalações de ponta, gramado de alta qualidade, áreas de bem-estar e recuperação, e espaços de treinamento modernos, o projeto foi pensado nos mínimos detalhes para atender às necessidades profissionais das atletas e equipes esportivas em geral, e gerar conexão com os torcedores para além das datas de jogos.
Imagem: Reprodução/Internet
Entre as opções gastronômicas do estádio estão restaurantes locais pertencentes a mulheres e pessoas negras, e o clube lidera um projeto de desenvolvimento urbano que pode exceder os US$800 milhões investidos em residências, espaços comerciais e áreas de lazer na região onde está localizado o CPKC Stadium. Abordagens como esta não apenas convidam a comunidade local a assistir ao espetáculo, mas também a tornam parte desse marco da história do esporte.
Engana-se quem enxerga a abrangência do projeto, para além do que compete à prática esportiva profissional, como uma conversa paralela ao negócio no esporte. Futebol antes de qualquer coisa é sobre a conexão entre pessoas. Da evolução de clubes de bairro a associações de trabalhadores, o esporte se transforma, mas nunca deixa de ser um bem das massas. Ao incluir partes desse universo que são costumeiramente ignoradas, o investimento não garante apenas uma aderência imediata e com potencial de retorno comprovado, como também dá um passo rumo à construção de um legado.
Para se ter dimensão de como este fator pode ser significativo no nosso mercado, o relatório de tendências de Marketing para 2025 da Kantar, referência em dados, insights e consultoria, apontou a inclusão como um dos fatores chave para o crescimento das marcas e estimou uma perda potencial de R$1,9 trilhões para o mercado brasileiro ao não considerar grupos comumente tratados como minoritários ao elaborar suas mensagens — baseada na estimativa do poder de consumo desses grupos pouco priorizados, incluindo mulheres.
Além do investimento em estrutura e da busca por parcerias que se alinhem com seus valores, o KC Current também se destaca pela sua abordagem de comunicação. Muito presente nas redes sociais, o clube faz excelente uso tanto da imagem de seus sócios e investidores notórios — como Brittany Mahomes, ex-jogadora de futebol e empreendedora, e seu marido Patrick Mahomes, quarterback do time de futebol americano Kansas City Chiefs — quanto de seus talentos, tendo liderado a liga em 2024 com a maior quantidade de jogadoras do mesmo time na lista camisas de mais vendidas da NWSL. Foram cinco atletas do Current, incluindo a brasileira Debinha.
Apesar do movimento do Kansas City Current ser inédito, ele não se trata de um retrato do momento particular que este clube vive. Trata-se da constatação de que a construção do futebol feminino é um investimento que vai muito além da responsabilidade social. Os números recentes de toda a liga comprovam:
Valorização de clubes: Em 2024, a média de valorização das franquias da NWSL ultrapassou US$100 milhões. Hoje, o Angel City FC tem o valor estimado de US$250 milhões — um recorde no esporte feminino;
Três anos seguidos quebrando recordes de presença de público: A liga ultrapassou a marca de 2 milhões de espectadores presenciais na temporada passada, o que representou um aumento de 44% em relação a 2023 e 96% em relação a 2022;
US$240 milhões por quatro anos de direitos de transmissão e exposição de marca: o novo acordo de mídia, assinado em 2023 e incluindo gigantes como CBS, ESPN e Amazon (Prime Video), tem valor equivalente a 40 vezes o contrato anterior.
E não se trata só de fomento ao esporte e crescimento ligado apenas aos profissionais diretamente envolvidos nele. Ainda em 2023 pesquisas do MarketCast, especialista em estudos de mercado, audiência e análise de dados, já constatavam que 77% do público da NWSL reconheciam e se dedicavam a conhecer as marcas patrocinadoras da liga, enquanto 74% eram propensos a consumir e indicar essas marcas. 7% a mais em relação à audiência da MLS, a liga masculina. A Amazon, como patrocinadora da NWSL, alcançou uma taxa de consideração de 88% entre os fãs da liga, superando marcas tradicionais em ligas masculinas.
Tão consolidadas quanto os pilares da indústria estadunidense, são os movimentos e lideranças ativas que vem demonstrando também no nosso território como o futebol feminino brasileiro já se estabeleceu e está pronto para dar passos mais largos rumo a muito mais que o simples direito de existir. A organização do Campeonato Paulista de Futebol Feminino, por exemplo, vem se destacando ano após ano no investimento em premiações, negociação de patrocínios e criação de espaços para novas marcas, além de exigências mais rígidas aos clubes participantes no que diz respeito ao investimento e ações necessárias para fortalecer suas equipes femininas, a fim de valorizá-las e também ao próprio campeonato.
Foto: Rodrigo Corsi
Durante o evento dedicado a discutir a liderança feminina no esporte, da SIGA, Sport Integrity Global Alliance (Aliança Global de Integridade Esportiva, em português), que aconteceu na cidade de São Paulo no início deste mês de março, Kin Saito, Diretora Executiva de Futebol Feminino da Federação Paulista de Futebol, citou a importância de repensar a maneira de lidar com o futebol como produto ao destacar as iniciativas da Federação em investir na produção e entrega do sinal dos jogos para conseguir melhores acordos de transmissão junto ao grandes players do mercado.
A questão proposta aqui não visa focar no que mais podem fazer os agentes já engajados e já conscientes da dimensão do esporte em um contexto comercial, mas sim sobre a urgente necessidade de participação das figuras, instituições e organizações esportivas em geral que ainda não compreendem o seu potencial enquanto negócio.
Se, por um lado, ainda podemos estar longe de conquistas como o CPKC Stadium, por outro, os grandes clubes brasileiros já contam com uma base de torcedores consolidada que, em sua maioria, ainda não enxerga as equipes femininas como parte legítima do mesmo clube pelo qual torcem. É um desafio que muitos não sabem como enfrentar, mas que muitos outros gostariam de ter a chance de encarar.
Diante do que já se observa nas maiores ligas do mundo — especialmente na norte-americana —, insistir em enxergar o futebol feminino apenas como uma obrigação ou ação de caridade, e não como um ativo estratégico, é um erro de proporções colossais. As direções estão traçadas, as lideranças existem, são capacitadas, colaborativas, acessíveis e ativamente engajadas. Além disso, há profissionais especializados prontos para apoiar iniciativas inovadoras, estruturar projetos com profissionalismo e orientar estratégias a partir de modelos internacionais bem-sucedidos. O futuro do futebol feminino já começou e, embora ainda haja muito a ser feito e inúmeras oportunidades a serem exploradas, quem ainda não percebeu isso já está ficando para trás.