Discussões sobre salary cap na NFL expõem a necessidade de seguir pensando no produto, por melhor que ele seja.
Atualmente no futebol brasileiro, cada vez mais recebemos o questionamento sobre a hegemonia de Flamengo e Palmeiras que, fruto de turnarounds financeiros e de gestão bem sucedidos, se consolidaram nos últimos 5 anos como as principais potências vencedoras por aqui. Nossa resposta é que “sim, a boca do jacaré está abrindo” e, dentro do chamado ciclo virtuoso do futebol, a tendência é que, quanto mais se ganhe, mais se arrecade. E dentro de um modelo associativo em que o incentivo central para Clubes de futebol não é o lucro e sim títulos, na prática sobra muito mais dinheiro para que os dois sigam investindo agressivamente no futebol e em contratações – como tem sim feito.
Neste sentido, dentro de todas as conversas sobre organização do futebol brasileiro, ainda muito centrada na formação da Liga de Clubes, também sempre reforçamos a importância de pensarmos numa estrutura de governança adequada e em um fair play financeiro que se aplique à realidade brasileira, da mesma forma que ocorre no futebol europeu e nos esportes americanos.
Enquanto no futebol europeu, de forma muito simplista (pois há outras regras dentro do balaio) os Clubes não podem gastar mais do geram como receita, no esporte americano um mecanismo importante para controlar gastos e garantir paridade competitiva é o Salary Cap, ou “teto salarial”, que resumidamente, é o limite de despesas anuais que cada franquia pode ter com os salários de seus atletas. Via de regra ele é calculado, tendo como base a geração de receita global da Liga e a aplicação de coeficientes de divisão desses valores. A grosso modo, é como se pegássemos as receitas dos 20 Clubes da Série A do Brasileirão e atribuíssemos (hoje aprox. R$8B) um percentual de 50% disso sendo destinado aos jogadores.
Portanto, quanto mais cresce a receita da Liga, maior o pote disponível para se investir em folha de pagamento dos atletas. Neste contexto, como a NFL é a máquina esportiva mais bem azeitada para geração de receitas hoje no mundo, tendo gerado aproximadamente USD20 bilhões na temporada 23/24, a porção de recursos disponível para se gastar com salários dos atletas também vem aumentando rapidamente, uma média de 6% ao ano nos últimos 15 anos.
Para a próxima temporada da NFL, que começa em Setembro, o teto salarial das franquias foi estimado em USD255MM para cada uma, representando um acréscimo histórico de USD30MM em relação à última temporada. No entanto, a Liga vem vivendo uma nova realidade no que se refere à destinação desses recursos, tendo visto uma concentração cada vez mais disso nas mãos dos Quarterbacks, os jogadores que, em tese, possuem maior valor e importância nas franquias.
A premissa é básica: uma franquia com um Quarterback Tier 1 teria mais chances de fazer uma temporada positiva culminando em uma vaga de playoffs, do que uma franquia sem um QB de elite. Ou seja, faria muito sentido gastar um bom dinheiro para ter um QB de ponta, correto?
Em teoria, sim, porém, o aumento desenfreado da remuneração dos QBs vem criando insatisfações entre gestores e proprietários da NFL. Na semana passada surgiram comentários de que alguns donos de franquias estão preocupados com a enorme diferença de salários dos quarterbacks e os demais jogadores do time.
Um exemplo disso é Joe Burrow, QB do Cincinnati Bengals, que tem remuneração anual de USD55MM, cerca de 25% de todo o recurso disponível para a folha salarial da franquia, deixando “apenas” 75% para os demais 52 atletas do elenco. O mesmo acontece com o QB do Jacksonville Jaguars, Trevor Lawrence, que recebe os mesmos USD55MM de Joe Burrow. Conclusão: atualmente há 11 QBs da NFL (dentre 32 franquias) que representam mais de 20% do espaço disponível para a folha total.
Para efeito de comparação, em 2018 o teto salarial era de USD177MM e o maior salário da NFL era de Jimmy Garoppolo, então QB do San Francisco 49ers, que recebeu USD37MM. Em 2010, o salary cap estava na casa dos USD120MM e Tom Brady era o jogador mais bem pago à época, com cerca de USD18MM por temporada. Ou seja, notamos o fenômeno da concentração nos QBs se intensificando na última década, saindo de menos de 10% em 2010 para 25% nesta temporada.
Entretanto, ter o QB mais bem pago dentro do seu time não é sinônimo de presença ou conquista do Super Bowl. Na verdade, não chega nem a ser sinônimo de temporada positiva. Desde 2000, a única temporada em que o quarterback mais bem pago ganhou o Super Bowl, foi em 2020 quando Patrick Mahomes liderou o Kansas City Chiefs ao seu primeiro título. Entre 2016-2018, os três QBs mais bem pagos da liga, Andrew Luck, Matthew Stafford e Aaron Rodgers não foram aos playoffs à época.
Os esportes e os mercados são muito diferentes, mas voltando ao paralelo entre NFL e o futebol brasileiro, atualmente a porcentagem dos salários dos jogadores mais importantes dos elencos de Flamengo e Palmeiras em relação ao total da folha de pagamento não chega a 10%.
O maior salário do futebol brasileiro pertence a Dudu do Palmeiras, com cerca de R$2,3MM por mês, o que corresponde a 7,7% da folha de pagamento do clube. O Flamengo, por sua vez, paga cerca de R$1,5MM para Gabigol e David Luiz, o que faz cada um corresponder a 8,6% da folha salarial.
Neste contexto, alguns proprietários dos times da NFL argumentam que, se os salários dos quarterbacks fossem limitados, por exemplo, a 17,5% do teto, todas as outras posições teriam um aumento de remuneração como resultado e isso valorizaria a Liga, criando equipes mais competitivas e menos dependentes de mega astros.
Vale ainda citar que Tom Brady, o maior QB de todos os tempos para muitos, por anos abriu mão de sua remuneração máxima, tendo deixado entre USD60MM e USD100MM “na mesa” para os Patriots tivessem mais poder de fogo na hora de gastar com atletas de outras posições e montar equipes mais fortes. O resultado todos sabemos – a maior dinastia da história do esporte, com 6 títulos no total.
Até o momento, a ideia de criar um novo salary cap para os QBs da NFL é apenas rumor e especulação, até porque essa mudança não foi pautada no CBA (Collective Bargaining Agreement – Acordo Coletivo de Trabalho da NFL que regulamenta todas as relações de trabalho entre a Liga, as franquias e os atletas), assinado em 2020 e que vai pendurar até 2030.
O ponto principal aqui é que, mais uma vez, no momento em que patinamos para estabelecer uma Liga centralizada de Clubes no Brasil, temos o exemplo lá fora do que pode ser pensado e feito, quando temos uma empresa gerindo o esporte como produto, com governança estabelecida e interesses muitos bem alinhados. Afinal, quando todas as 32 franquias são sócias do negócio e os atletas participam diretamente disso, tudo precisa ser racionalizado para que a Liga tenha o maior apelo competitivo possível e nada mais relevante do que debater uma boa repartição do bolo, para que todos estejam em pé de igualdade e com possibilidades de alcançar uma boa performance esportiva.